sábado, 31 de julho de 2010

Ao vivo e a cores

Ele era bancário. Ela, veterinária. Ou pelo menos era o que ela queria ser. Isso sem contar o que ele poderia ter sido. Há aqueles que trabalham e os que dizem que têm de trabalhar. O dinheiro os colocou frente a frente. Ele esqueceu as próprias pálpebras. Alguns olhares deveriam ser proibidos dentro de bancos. O segurança mandava, pelo celular, mensagens para a amante, que não respondia. Os cachorros não sabiam, mas ela usava decote. Ele fora promovido após muita obediência e um relatório que continha a palavra “correição”. Obrigado e um aperto de mãos – uma delas suada. Seis meses até que veio o destino: um empréstimo para um par de íris azuis. Ele cumpriu. A esperança verdejava num quintal com netinhos, em algum lugar dentro daquela cabeça intuitiva, limitada por um crachá laranja. Ela quis pagar. Mas não pôde.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dylan sempre tem razão

Eu deveria fazer uma saudação. Mas não dá para colocar música e teria que tocar The Times They Are A-Changin' no BG. Então lá vai um texto rasteiro (em todos os sentidos) para reinaugurar isso aqui.

Não sou fã de Julio César, o goleiro da seleção. Era fã do Taffarel. Admiro o Marcos até hoje. E quero ver Diego Alves na seleção. Mas o flamenguista não, embora um amigo tenha mandado uma foto dele com a camisa do Atlético tempos atrás. Para mim, trata-se de um bom goleiro, mas que falha regularmente. A intenção, no entanto, não é analisar o chorão. O bom é ver a opinião pública (se é que dá para usar tal termo) confusa diante da verdade - "Julio César é o melhor goleiro do mundo" - e o fato: falha clamorosa na Copa do Mundo. E muita gente ainda perde tempo argumentando contra ou a favor.

Lembrei de Diablo Cody. Mesmo porque não tem nada a ver uma coisa com a outra. Mas a roteirista de Juno já foi citada neste blog. E está de volta no resgate! A ex-stripper ganhou um Oscar pelo roteiro do draminha adolescente feminista. Tudo bem, até Stallone já ganhou um Oscar por ter escrito (!) um roteiro. Mas vamos a Cody: perspicácia inegável, ritmo perfeito, que diálogos, e profundo poder de observação sobre um universo que Holywood sempre contentou-se em apenas tangenciar. Oscar nela. Então Diablo ataca de novo com o texto de Garota Infernal. E dessa vez ela ainda contou com o brilho de Megan Fox, o animal mais belo sobre a terra, como diria Jean Cocteau. E o que assistimos? A pretensão em sua forma mais vulgar. O equivalente a ver alguém usar uma música do Chico para fazer pole dance.

Como analisar tamanho constrangimento sendo que nós já demos um Oscar para a moça? É só admitir que as águas estão subindo, e em breve todos estaremos encharcados até os ossos. O presente já é passado. Dylan avisou.

terça-feira, 10 de março de 2009

O caráter e o molde

Outro dia contei para um amigo e ele rachou de rir. No meio do bar. Começou a gargalhar sem ter bebido nem um copo da porcaria meio quente de cerveja que eu estava bebendo sozinho. Ele que poucos minutos antes estava com cara de bunda porque não tava bebendo, o emprego tava uma merda e a vida não ia pra frente. Eu, que estava com o emprego e a vida atolados no mesmo esgoto, e por isso bebia, resolvi alegrar aquela cara de bunda com uma historinha constrangedora de infância. Coisa simples, cruel e engraçada, como toda boa história de criança.

O caso era que lá pelos meus doze anos, matriculado em uma sexta série de colégio de freiras, tão tímido que parecia ofensa e mais magro que tímido, tinha me acontecido um desses momentos em que parece que o mundo para só para rir da gente. Uma das garotas da turma - precursora dessas paparazzi que têm câmeras na bolsa, no celular, no batom, nos óculos e ficam tirando fotos das amigas, dos amigos, das amigas com os amigos, dos amigos com desconhecidos incautos, das amigas fazendo pose, dos amigos rindo das poses das amigas, e de tudo que envolva amigos e amigas até o cartão acabar –, resolveu juntar todo mundo para uma foto. Eu - que também era todo mundo e filho de Deus – me uni a uma extremidade daquele bolo de crianças que já se achavam adolescentes. Foi aí que a menina, de apenas doze anos mas que parecia o diabo vestido numa malha azul com listrinhas brancas daquele colégio católico, soltou a frase: “Olha (ela era educada), você aí da ponta (e não sabia meu nome, claro), não tá cabendo todo mundo na foto, então você não vai sair não, tá?”. Eu, que na época mal falava com garotas, respondi a única coisa que veio à minha cabeça humilhada e repleta de uma inocência há muito perdida : “Tá”.

É claro que me lembro disso até hoje, mesmo tendo esquecido o resto da sexta série inteira. Não lembro o nome da pirralha, a cara da pirralha ou mesmo quem eram os escolhidos que saíram na foto. Lembro vagamente que os poucos amigos da época me consolaram e ajudaram a inventar xingamentos para a gracinha. Lembro também que na hora pensei que ela podia ter dado um passo para trás (aliás, eu era tão magro que menos de meio passo já me enquadraria) ou podia não ter falado nada, já que eu não ia ver mesmo a porra daquela foto depois que ela fosse revelada (é, naquele tempo eram aqueles rolinhos de filme mesmo, mas velho é o caralho!). Depois de 18 anos sofrendo – até hoje corro para conferir no visor da máquina para ver se não me cortaram de alguma foto -, penso que melhor seria se eu tivesse dito: “Ah, querida, faz assim então: vem você pra cá, aperta um pouquinho o pessoal e deixa que eu tiro, assim você também sai na foto”. E depois cortá-la do enquadramento, já que ela só descobriria ao abrir o pacote do Cine Foto JB. Mas é claro que Deus só faz a gente pensar numa vingança assim tão boa e classuda quando ela já tá fria pra cacete e nem dá mais pra comer.

Garotas me magoaram depois com muito mais requinte e hoje acho até singela a historinha. Fora que ela é infalível contra caras de bunda. Mas precisa rir tanto, porra? É o tipo de história que você ri pra caralho, mas só enquanto o cara que te contou também está rindo. Depois você para, cacete! Foi o que eu disse para o abstêmio. E ele rebateu: “Mas é engraçado demais! E você tem que pensar que coisas desse tipo moldaram o seu caráter e te transformaram nesse cara bacana que você é hoje”. Só um sem vergonha que não bebeu nada para dizer uma frase dessas a um amigo do peito. Desisti de argumentar, bebi mais um copo da cerveja (que a essa altura descia rolando, uma maravilha) e pensei que na época eu também era um cara bacana (talvez até mais) e que ainda hoje, após quase duas décadas de pancada, meu caráter continua sendo insistentemente moldado.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Da amizade II

Era rotina de carnaval, se é que isso existe. A hora pouco variava, as pessoas menos ainda. Nos reuníamos na pracinha, para as primeiras cervejas, e esperávamos a van que nos levaria ao mesmo destino: um lugar de esperanças e promessas sempre verdejantes, mesmo que nos dias anteriores uma multidão de insensíveis houvesse pisado sobre elas.

Eu ali estivera muitas vezes, sempre com alegria. Mas naquele dia usava o sorriso como fantasia, porque o coração estava esmigalhado, logo ele que prefere o samba a qualquer ritmo. Na ida, a van tremeu de animação, ladeou com sobriedade os morros de Minas e roncou serena sob a gritaria. Desembarquei ainda mascarado, mas, no meio daquele éden, acabei cedendo às tentações libertárias da madrugada carnavalesca.

A Quarta-Feira de Cinzas já clareava quando voltamos à van. Mas, na estrada, a angústia despertou, sacolejada pelo choro ríspido de um irmão, sentado dois bancos atrás. Ele como que uivava, numa reação quase involuntária de sobrevivência. Os motivos eram outros, tão rochosos que faziam dos meus areia. Como os demais passageiros, dobrei-me à dor de uma impotência que não era escolha, só destino. Os gemidos davam tapas num mar de silêncio, tentando escapar ao afogamento, e logo se viam de novo engolfados pelo viscoso breu. Mas aos poucos uma chuva debilmente solidária gotejou lágrimas nos vidros das janelas. Só isso o consolou, como se outro choro enfim tivesse começado.

Chegamos à casa sob chuva e luz. E no caminho do portão à varanda, nós dois apenas, o mútuo conhecimento de nossas fraquezas e o silêncio hipnótico da amarga precipitação nos uniram numa vontade sublimada de resistência. Racional, de novo encerrado em uma toca de onde havia saído - como já imaginado - para dolorir-me, entreguei-me a um banho escaldante, na tenção de limpar-me dos rabiscos dos erros, de apagar o rascunho de um amor disforme, lamentável como uma mancha cor de grafite, de bordas assombreadas, que se recusa a deixar o branco voltar ao que era antes. Saí a tempo de ver o irmão, nuelo, com as ceroulas encharcadas, dançando entre pingos agora musicais, numa coreografia que era raiva, redenção, luta, desabafo, alegria, expurgação e recomeço. Mesmo tendo resistido aos inúmeros apelos, foi como se eu tivesse dançado com ele.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Da amizade

Ao telefone:

- E aí, vamos lá?
- Pô, tava quase dormindo.
- Deixa de ser gay, tô passando aí em 15 minutos.
- ... tá bom.


No carro:

- Isso é lugar de parar o carro? No meio da rua.
- Não é assim que a sua mãe para?
- Vai logo que eu tenho que voltar cedo.
- Estava pensando em levar umas cervejas, mas você não está bebendo, né? De repente a gente leva uma Coca.
- Não estou bebendo, mas vocês podem beber.
- É, mas eu tô sem grana também. Acho que mal vai dar para comprar uma Coca.
- Se você quiser, eu te empresto.
- Pô, mas você nem vai beber. Vamos comprar uma Coca lá no bar. Coca você bebe, né?
- Bebo um pouquinho.
- Deixa que eu desço e compro então. Tenho R$ 1,50 aqui, me empresta aí pra completar a Coca.
- Quer levar mais? De repente você compra uma cervejinha para vocês.
- É. Então tá. Me dá R$ 10 aí.

No bar:

- Quanto é a cerveja long neck?
- Seis por R$ 10,50.
- E a Coca?
- R$ 3.

No carro, de novo:

- Pô, cara, não deu para comprar a Coca não. Você queria mesmo?
- Não, pode deixar.
- Então segura as cervejas aí.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Filha

Entro na Fnac, me dirijo à seção de livros, estante de poesia brasileira, e me deparo com uma cena inusitada: uma menina de uns 11 anos, deitada, com um monte de volumes abertos ao seu redor, ao lado de um cara franzino que, de relance, julguei ser um amiguinho, mas depois descubro que era o pai. Dou uma olhada nos livros espalhados e qual não é a minha surpresa: Cecília Meireles, uma Cora Coralina e até um glorioso Manoel de Barros! Mas o melhor vem depois. A menina, decidida, mostra a capa ao sujeito meio fracote e roga: "Pai, compra esse?". Era um do Quintana. E o cara responde: "Filha, o pai já comprou muitos livros para você hoje, não é?". Ela parece concordar, mas emenda: "E quando é que a gente vai a uma livraria de novo?". E o magrelo: "No fim de semana a gente vai na Cultura". A garotinha, como quem assina um contrato, encerra: "Então tá".

Eu, que pude levar um Quintana, pensei:
"Ainda vou ter uma dessas".

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Soberba

Ela pensa que ela é
o beijo da atriz
e nunca muda.