sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O mau ator

Se bem me lembro, a atuação foi séria – se não pelas intenções, ao menos se considerarmos que os dois não riram uma só vez e tampouco conseguiram ficar à vontade um instante sequer. Mas, curtida pelo sol diário, após tantas luas, a cena se tornou engraçadíssima, sobretudo para mim, que estava lá.

O restaurante, visto por olhos com menos de 25 anos de idade, era sórdido: a penumbra, em vez de descer como suave manta sobre cada casal, servia para tentar esconder a pintura cheia de rugas, as toalhas de mesa muito usadas e as cores desbotadas dos freqüentadores. Mais escuro eu me sentia porque ela tinha apagado a luz por trás dos olhos verdes, que para mim já não faiscavam. Sem destaque, imersos no cenário, nós calávamos os diálogos. Ela cadeira dum lado, eu do outro, e um rio – repleto de corredeiras, com a foz iminente e a distância entre margens tão larga que nenhuma mesa podia dar conta – passando no meio. A coisinha de 1,60m e suas razões um monólito só, muito além de altura que eu pudesse ombrear.

Prezo silêncios. Mas apenas se forem meus. Como ela dava tom de represália àquele grito sufocado, chamei o garçom e pedi-lhe que me recitasse as indicações do cardápio. Consegui que o constrangimento se dividisse por três. Mas ela, mexendo apenas um músculo dos lábios, passou da indiferença concentrada no vazio sonoro para o desprezo muito agudo de um sorriso. O terceiro, de súbito um amigo solidário, ao me ver afundar, vítima de uma vingança emocional, lançou-me os olhos como se fossem corda trançada com toda a piedade reunida em vinte anos de trabalho noturno. Era pouco para me dragar acima da resignação. Pedi duas taças de Porto. E o ininterrupto consentimento que se seguiu a isso deixou entreouvir a música de fundo: um piano de teclas alvíssimas arrastava o romantismo tuberculoso por um tapete vermelho, entre pausas breves e notas cada vez mais semifusas.

As minúsculas taças de vinho, colocadas nos extremos daquela mesa intransponível, iluminaram de vez a circunstância: o preço era muito alto por recompensa tão diminuta. Consciente, enfim, minhas opções se restringiram diante da nossa protagonista. Eu era coadjuvante. E não adiantaria prolongar falas, sapatear em cena ou tentar despertar nela qualquer sentimento que não estivesse programado. O roteiro era da mocinha.

Deslocado, tomei para mim o silêncio. E apenas sinalizei a conta. No carro, a pressão do não dizer nada aumentou. Baixei os vidros, coloquei o rosto para fora por três segundos e senti a bofetada de gelo doer antes pelo que viria depois. Seguimos até a casa dela como se Truffaut olhasse por nós. Até pensei em asfaltar caminho para o vilão, e atirar aquela bolha de vácuo motorizada por cima da ponte. Mas eu já era outro. E comecei a declarar palavras que me vieram à boca como se fossem texto que eu já tivesse lido. Sem me dar por mim, contei a ela das emoções que me tomaram quando a vi pela primeira vez. Enumerei suas qualidades sem usar adjetivos, disfarçando os elogios em uma sintaxe simples o suficiente para dar-lhe a certeza de que aquilo era a coisa mais sensata que ela já ouvira na vida. Pedi desculpas pelos meus erros, com ênfase nos que eu cometera sem perceber. E terminei com o epitáfio ideal para uma relação que já nascera morta, mas que a mulher fizera questão de assinar o óbito. “Nunca vou me perdoar por ter te perdido”. Fiz esforço para evitar o cinismo. Meu sorriso coçava comédia. Deve ter sido a primeira vez que a surpreendi. Mas ainda assim ela continuou impassível. Me deu um beijo no rosto como quem apaga um telefone da agenda. E, com uma batida de porta, o escuro voltou. Demorei muito tempo para conseguir rir depois daquilo.

Ciclo

Depois de longa pausa, volto a escrever por aqui. A partir de agora, deixo as frases sem efeito, as fraturas expostas e as crônicas um pouco de lado para me dedicar a pequenos textos ficcionais. Aproveitem e usem os comentários para as críticas, esses quitutes!