segunda-feira, 9 de março de 2009

Da amizade II

Era rotina de carnaval, se é que isso existe. A hora pouco variava, as pessoas menos ainda. Nos reuníamos na pracinha, para as primeiras cervejas, e esperávamos a van que nos levaria ao mesmo destino: um lugar de esperanças e promessas sempre verdejantes, mesmo que nos dias anteriores uma multidão de insensíveis houvesse pisado sobre elas.

Eu ali estivera muitas vezes, sempre com alegria. Mas naquele dia usava o sorriso como fantasia, porque o coração estava esmigalhado, logo ele que prefere o samba a qualquer ritmo. Na ida, a van tremeu de animação, ladeou com sobriedade os morros de Minas e roncou serena sob a gritaria. Desembarquei ainda mascarado, mas, no meio daquele éden, acabei cedendo às tentações libertárias da madrugada carnavalesca.

A Quarta-Feira de Cinzas já clareava quando voltamos à van. Mas, na estrada, a angústia despertou, sacolejada pelo choro ríspido de um irmão, sentado dois bancos atrás. Ele como que uivava, numa reação quase involuntária de sobrevivência. Os motivos eram outros, tão rochosos que faziam dos meus areia. Como os demais passageiros, dobrei-me à dor de uma impotência que não era escolha, só destino. Os gemidos davam tapas num mar de silêncio, tentando escapar ao afogamento, e logo se viam de novo engolfados pelo viscoso breu. Mas aos poucos uma chuva debilmente solidária gotejou lágrimas nos vidros das janelas. Só isso o consolou, como se outro choro enfim tivesse começado.

Chegamos à casa sob chuva e luz. E no caminho do portão à varanda, nós dois apenas, o mútuo conhecimento de nossas fraquezas e o silêncio hipnótico da amarga precipitação nos uniram numa vontade sublimada de resistência. Racional, de novo encerrado em uma toca de onde havia saído - como já imaginado - para dolorir-me, entreguei-me a um banho escaldante, na tenção de limpar-me dos rabiscos dos erros, de apagar o rascunho de um amor disforme, lamentável como uma mancha cor de grafite, de bordas assombreadas, que se recusa a deixar o branco voltar ao que era antes. Saí a tempo de ver o irmão, nuelo, com as ceroulas encharcadas, dançando entre pingos agora musicais, numa coreografia que era raiva, redenção, luta, desabafo, alegria, expurgação e recomeço. Mesmo tendo resistido aos inúmeros apelos, foi como se eu tivesse dançado com ele.

6 comentários:

Paulo Rená da Silva Santarém disse...

Putz, que texto bom. O estilo tá com uma marca, já, Mateus. Dá pra saber que é seu.

E a história é boa também. Uma descrição excelente de como a chuva pode esconder ou revelar o sal de nossas lágrimas.

Agora ver amigo pelado dançando na chuva, sério, é bom estar bêbado...

Paulo de Tarso disse...

só vc mesmo pra transformar uma bela cachaçada em poesia....

Anônimo disse...

E vero.. ja da pra comecar a perceber uma marca propria, comecar a tentar inferir, em uma serie de textos misturados, quais seria aqueles que voce escreveu.. talvez a tematica direcione essa avaliacao... anyway.. concordo com o que o negao disse..

Anônimo disse...

quais seriam, antes que alguem aumente um erro de digitacao..

Ana Rita Gondim disse...

Uau! Não deu pra não comentar. Belíssimo texto! Fiquei boba.

Sabrina disse...

LINDO!