segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Insensível

Nenhuma mulher deveria pintar as unhas dos pés, promulguei sem saber que ela estava toda esmaltada dentro daquelas botas de couro sintético. Era apenas um ressentimento surdo, que nascera em meio ao lodo de mágoas ancestrais e que eu saboreava sem guarnições, embriagado pelo prazer de me sentir vivo após tantas mortes. Eu teria preferido fazer a súplica justa: frugal sobremesa que ela resolvesse comer por gosto próprio. Mas o rancor se faz girar em betoneiras, aspira a concretudes, quer se mostrar coisa muito dura de ser engolida. Caminhávamos sobre calçada esquecida, rachada em outros caminhos, suja de solas que já haviam passado. Mas ela não era das que se importam por onde pisam. Vocês homens. Minha sobrinha de cinco anos já é toda colorida. Só o pai dela não gosta. E ficamos soterrados no mútuo betume. Só saímos de novo após dias de silêncio e culpa. Você sumiu, ela arriscou de sandálias. Suspirei. Que tal viajar comigo à praia? Não posso. Se você quiser, eu não pinto mais as unhas. Eu não poderia te pedir isso. Eu não me importo. Nem eu.